Chamada de Lei da Empresa Limpa, a nova legislação vai mexer com o dia a dia das grandes e pequenas empresas do país. Para melhor, espera-se
Histórias de grandes empresas envolvidas em esquemas de corrupção com funcionários públicos costumam ser um dos principais assuntos da mídia no Brasil. A diferença, de uns tempos para cá, é que elas começaram a se dar mal. Alguns casos deixaram de “acabar em pizza” e levaram à prisão de empresários e executivos, multas milionárias e proibição à participação em concorrência pública, entre outras punições. Há uma razão para isso: desde janeiro, o Brasil possui uma lei anticorrupção, a Lei Nº 12.846, inspirada nos melhores modelos implantados em outros países.
A nova legislação conseguiu mirar diretamente as empresas ao acabar com o “jeitinho” usado desde sempre para escapar de acusações de atividades ilícitas. Até então, bastava alegar desconhecimento – “eu não sabia” ou “o funcionário ou fornecedor agiu de forma isolada” – para se livrar da acusação. Este avanço se deve ao conceito de responsabilidade objetiva, que não faz diferença entre a corrupção ativa e a omissão. Se não cuidou para impedir um pagamento de propina em um negócio, a empresa é igualmente culpada. E pode ser submetida não apenas a um processo administrativo, mas também criminal.
Outras mudanças trazidas pela nova legislação atingem também brasileiros que tenham praticado ato corrupto no exterior e a responsabilização direta de sócios e administradores. Um dos pontos que mais chamaram a atenção foi o estabelecimento do acordo de leniência, uma prática nunca vista no país, que dá o direito de amenizar a punição se a empresa se antecipar e informar as autoridades sobre o problema.
É uma lei dura, que
traz riscos para grandes
e pequenas empresas
No entanto, o rigor das novas regras não significa que as empresas estarão indefesas. A finalidade principal da lei foi a de criar uma cultura de prevenção à corrupção. Por isso, houve grande valorização da implantação de medidas de educação e controles, conhecidas como compliance. Em casos de ocorrência de casos de corrupção, os atenuantes estão diretamente ligados à capacidade da empresa demonstrar com evidências que adotou mecanismos de compliance e que está comprometida em combater a corrupção internamente e na cadeia de fornecedores.
Conheça a íntegra da Lei Nº 12.846:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2013/lei/l12846.htm
As punições previstas na Lei Nº 12.846 foram especialmente pensadas para quebrar a relação custo X benefício de corromper ou se deixar corromper por um funcionário público. A partir de agora, vai custar muito caro continuar a usar a corrupção como parte do negócio, pois as penas atingem o patrimônio e a vida da empresa e até dos executivos. Veja quais as principais sanções previstas na lei, determinadas pela gravidade da infração:
As regras e sanções se estendem a toda a cadeia produtiva envolvida no contrato. O que significa que a sua pequena empresa também corre este risco, como explica o advogado Antonio Carlos Porto de Araujo, especialista no tema na consultoria Delta Economics & Finance. “Logo no artigo 1º, está expressamente regulado quem pode ser o agente passivo quando se infringe aspectos da lei. Não se faz uma diferenciação entre o tamanho das empresas, e nem mesmo se está regularmente instalada ou informalmente.”
Embora ainda não tenha sido regulamentada, condição para que seja aplicada (o que está previsto até o final deste ano), sua aprovação foi suficiente para influenciar o clima empresarial no país. Quem ainda não tem uma estrutura implantada de prevenção à corrupção, começou a tomar providências. É uma lei dura e traz riscos, mas representa acima de tudo a grande chance para as empresas serem as protagonistas da transformação que o país todo pede. Para as pequenas empresas, como a sua, abre a oportunidade de criar riqueza em um ambiente de negócios saudável, dentro de uma competição justa, na qual a produtividade seja premiada em vez da esperteza.
Uma questão de ética
A lei anticorrupção trata basicamente do nosso senso ético. Veja como o escritor, professor e filósofo Mario Sergio Cortella define o tema:
“Não tenho nada com isso”. Esqueça as facilidades do jeitinho brasileiro
O que a Lei Anticorrupção tem a ver com a sua empresa. E porque vai exigir mais confiança e colaboração entre grandes e pequenas companhias
O Brasil, desde janeiro de 2014, tem uma das mais avançadas legislações de combate à corrupção. Antes da promulgação da Lei Nº 12.846, conhecida como lei anticorrupção, somente os funcionários pegos em flagrante eram punidos; a empresa ficava livre da culpa. A situação deve mudar radicalmente nos próximos tempos. Com as novas regras, a responsabilidade das pessoas jurídicas pelo controle ético dentro e fora da empresa aumentou.
O fato de apenas grandes corporações, como Petrobrás, Alston e Siemens, e as maiores construtoras brasileiras despontarem no noticiário sobre escândalos de corrupção não significa que o assunto não diga respeito às pequenas empresas. Prevalece a máxima de que todos, não importa o tamanho, são iguais perante a lei..
Seja de onde tenha partido o ato de corrupção que beneficiou um projeto – de uma grande empresa ou de um pequeno fornecedor – as duas partes serão responsabilizadas e estarão sujeitas a punições. Uma das inovações da legislação, o conceito de responsabilidade objetiva, estabelece a responsabilidade compartilhada pelos atos praticados por um funcionário ou um trabalhador terceirizado, o que implica diretamente a cadeia de fornecedores.
As PMEs também são passíveis das mesmas punições, de acordo com o advogado Antonio Carlos Porto de Araujo, da consultoria Delta Economics & Finance, tanto na fase de licitação quanto de execução de um contrato. “A nova realidade impõe maiores cuidados das empresas no momento de escolher os parceiros para determinados projetos.” Uma das ressalvas que vêm sendo feitas à legislação aponta justamente a fragilidade das pequenas empresas em comparação com os recursos das grandes. Embora a PME participe dos projetos públicos em posição minoritária, o advogado ressalta que é possível adotar medidas alinhadas à nova lei.
Três pontos apresentam maiores riscos para uma pequena empresa em relação às grandes e devem merecer atenção redobrada:
Perder o direito à pena atenuante por não contar com um sistema de orientação e monitoramento para a prevenção à corrupção – A legislação prevê atenuantes para uma empresa envolvida em investigação que tenha ferramentas como código de conduta e uma política clara e comprovadamente aplicada para os casos de desvios de gestão. As grandes empresas, especialmente as multinacionais e as do sistema financeiro, já têm programas de compliance estruturados e recursos para mantê-las. Não é a realidade das pequenas empresas.
Dispor de pouca capacidade financeira para dar conta sozinha da reparação de dano – Neste caso, os bens dos sócios poderão ser requisitados para ressarcimento dos prejuízos causados ao patrimônio público. Para o consultor, “o que se deve procurar é o cuidado mútuo entre as partes. Passa a ser fundamental vigiar e confirmar a adequação de cada participante e não deixar que um deles, por processos desalinhados com o arcabouço legal, prejudique todo o projeto. São cuidados que uma PME pode tomar, tanto para fazer parte de negócios em parceria, quanto para não ficar fragilizada no caso de algum parceiro infringir a lei.”
Ter menor capacidade de defesa em um eventual acordo de leniência – Em um projeto consorciado, a empresa com maior poder econômico pode reservar os melhores meios de defesa à sua própria estrutura, deixando a PME ainda mais fragilizada, com risco de sofrer sanções até mesmo desproporcionais. “Para se prevenir nessa situação, o fornecedor deve dobrar os cuidados com o contrato e com a própria gestão”, explica o consultor.
“Os recursos desviados pela corrupção deixam de atender as reais necessidades nacionais”
A entrada em vigor da lei anticorrupção atende ao desejo nacional por mudanças e também à pressão internacional para que o país se alinhe às melhores práticas de combate a este crime
No arcabouço legal brasileiro faltava justamente dispor de um mecanismo de punição ao único elo ainda ileso nos atos de corrupção, as empresas privadas. Ao criminalizar a prática de suborno de agentes públicos com foco na pessoa jurídica, a Lei Nº 12.846 pode se tornar um dos mais importantes instrumentos para desatar os gargalos de competição e competitividade que prejudicam o desenvolvimento pleno do país. Nesta entrevista, o advogado e especialista no tema Antonio Carlos Porto de Araujo, da consultoria Delta Economics & Finance, explica como a corrupção atingiu tal dimensão no Brasil e qual o potencial da nova legislação para mudar este cenário.
O Brasil demorou para endurecer o tratamento à corrupção. O que motivou a criação da Lei Nº 12.846/13 alinhada às iniciativas internacionais?
A abertura comercial foi um dos motivadores para que as práticas fossem aperfeiçoadas, pois o problema afeta as regras de competição e competitividade. A inserção do país no mercado global chama a atenção de investidores e demais parceiros internacionais, cujos países de origem já dispõem de um arcabouço regulatório preventivo de práticas de corrupção. O país também havia firmado acordo com a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), pelo qual os países signatários do tratado se comprometeram a combater a corrupção nas transações e no comércio internacional. A Lei Nº 12.846/13 trouxe mecanismos aptos a atender as demandas.
Quais fatores levaram o país a atingir tal nível de corrupção, considerado um dos mais altos do mundo e mais impregnados na sociedade?
Há pelo menos três fatores preponderantes. O primeiro ocorre devido à desorganização social e à deficiência do Estado em fornecer os meios necessários para que essas práticas sejam coibidas com eficácia. Criou-se, então uma concepção de que, para se fazer negócios com o ente público, é necessário ou conveniente o pagamento de propina ou oferecimento de favores às pessoas ou estrutura desse ente público. O segundo ponto está no lado comportamental – em uma sociedade desigual, a delinquência passa a ser vista como uma reação normal. Digo normal porque, nesta visão, a corrupção não deriva, essencialmente, de uma patologia, quer individual, quer social. O crime de corrupção torna-se consequência aceita do desenvolvimento social e da cultura popular local. O terceiro ponto está no próprio aperfeiçoamento da prática deste crime. Mecanismos de blindagem patrimonial, criação de empresas fictícias, contas em paraísos fiscais fazem parte do complexo mecanismo utilizado para essa prática delituosa. Os valores e favores pagos na troca por benesses com o ente público deixam estrategicamente de ser documentados. Ao contrário, usam rotas criadas para o desvio de dinheiro e pagamento utilizando-se de terceiros, os chamados “laranjas” para distribuir e lavar o dinheiro destinado e originado dessas práticas.
Como a corrupção das empresas privadas prejudica o desenvolvimento de um país?
Tem-se clara a premissa de que a corrupção praticada pelas empresas privadas prejudica todo o desenvolvimento nacional, ao aprisionar recursos que originalmente seriam aplicados na máquina pública em atendimento às reais necessidades nacionais. Esses valores sequer ingressam ao Tesouro Nacional. Por isso, a importância da criação da lei anticorrupção, pois trata da responsabilidade, civil e administrativa das pessoas jurídicas ou grupos econômicos que lesem o patrimônio público.
Quais os setores econômicos mais vulneráveis à nova legislação?
Há setores no Brasil historicamente sensíveis à corrupção. Envolve as cadeias produtivas muito dependentes de relações comerciais com o poder público, como a de construção civil, transporte público e lixo. Outros setores vulneráveis são aqueles em que há menor concorrência e maior poder de monopólio combinado com baixa prestação de contas. Também em segmentos em que a terceirização é regra, os cuidados e conformidades deverão ser redobrados.
Como a lei anticorrupção pode modificar este quadro?
Há alguns anos, com a pressão regulatória e os mecanismos de controle das contas públicas, nota-se uma preocupação maior em prevenir que essas relações contratuais tenham desvios. Ao exigir práticas concorrenciais saudáveis, as novas regras vêm reforçar este movimento que busca desestimular a prática da corrupção. Em relação à terceirização, objeto de um dos artigos da lei, já se nota no mercado uma tendência de revisão de contratos e processos, com vigilância muito maior em relação às empresas terceirizadas, já que práticas de corrupção de uma empresa atingirão a todas. Deixar de rever processos e contratos será um erro grande.
Que medidas preventivas estão ao alcance de uma PME, levando em conta que ela dispõe de poucos recursos e tempo para cuidar disso?
As medidas a serem levadas em consideração são as mesmas de qualquer empresa, respeitadas suas especificidades e escala. Inicialmente deve passar por treinamento, qualificação e requalificação de sua força de trabalho, esclarecendo os aspectos amplos da lei anticorrupção, bem como suas implicações. Grande parte das questões abrangidas pela legislação dizem respeito ao comportamento dos colaboradores. Muitas vezes, eles desconhecem o alcance da lei. Sabe-se que há um grau de pessoalidade muito grande entre colaboradores de PMEs e o ente público que o contrata e é comum a troca de favores e presentes entre eles. Contratos de compra com regalias e premiações fazem parte da história brasileira. Isso deverá ser radicalmente alterado, já que o enquadramento à nova lei poderá fazer com que essas práticas sejam severamente punidas.
Fonte: Diário do Comércio – SP